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Os brasileiros dos quilombos vão constar nos censos. É um passo contra a “invisibilidade”

Pela primeira vez em 132 anos, os censos brasileiros, que estão a decorrer, vão incluir a contagem de membros dos quilombos, comunidades fundadas por escravos. Na Ilha de Maré, em Salvador, onde há diversos quilombos, esta contagem é um passo em direcção à transformação política pela qual os organizadores locais têm lutado.

“Fazer parte dos censos é uma estratégia nossa, uma estratégia de resistência e mudança”, diz Marizelha Carlos Lopes, 52 anos, activista e pescadora desta ilha onde 93% das pessoas se identificam como negras. “Um dos nossos objectivos é escapar da invisibilidade intencional.” A amiga Eliete Paraguassu, 42 anos, está a montar outra frente na estratégia. É a primeira mulher da ilha a fazer campanha por um assento na legislatura do estado da Bahia – uma num número recorde de candidatos negros a concorrer para o gabinete estatal e federal no Brasil nestas eleições de Outubro.

Os censos actualizados e o aumento do número de candidatos negros são resultado dos séculos de escravatura, que apenas acabou em 1888, tornando o Brasil no último país do mundo a abolir a prática. Os quilombos foram formados ao longo de séculos por pessoas escravizadas que escaparam do trabalho forçado e criaram comunidades isoladas e auto-suficientes em florestas remotas e cadeias montanhosas ou em ilhas, como a Ilha de Maré.

Os residentes dos quilombos esperam, agora, que a contagem seja feita adequadamente e que mais vozes sejam eleitas e abram a porta para melhorias sociais e garantias de direitos para pessoas e sítios há muito esquecidos pelos mapas oficiais.

A associação nacional dos quilombos, a CONAQ, identificou recentemente cerca de seis mil quilombos. Antônio João Mendes, líder do CONAQ, refere que o reconhecimento do governo destas comunidades ganhou força durante o mandato do presidente Lula da Silva, há duas décadas, quando as comunidades conquistaram direitos de território mais formais e apoio para programas culturais.

A candidatura deste ano de Lula, diz Mendes, apresenta um forte contraste com o presidente incumbente Jair Bolsonaro, que desmantelou muitos desses programas e atrasou o reconhecimento de outros quilombos. Bolsonaro foi multado em 50 mil reais (cerca de dez mil euros) em 2017 por insultar residentes de quilombos ao dizer que “não fazem nada” e “nem sequer são bons para procriar”. O tribunal rejeitou o caso porque Bolsonaro era deputado federal na altura dos insultos.

Na Ilha de Maré, os residentes dos quilombos sobrevivem há várias gerações graças ao trabalho dos pescadores. O sobrinho de 26 anos de Marizelha, Uine Lopes, que acorda às três da manhã para pescar nas águas cristalinas que banham a sua comunidade, Bananeiras, eternizou orgulhosamente esta tradição com uma tatuagem no braço esquerdo do seu avô a lançar uma rede. Sem pontes que liguem à terra principal, a cerca de um quilómetro de distância, os residentes da Ilha de Maré, que não tem carros, movem-se como os seus ancestrais: a pé, a cavalo ou em pequenos barcos. Uine Lopes diz que parece uma ilha de calma, longe da confusão e violência da grande cidade.

Durante as tardes, as mulheres reúnem-se para tirar a carne dos caranguejos e amêijoas apanhadas nesse dia, enquanto outras entrançam os tradicionais cestos de palha. Nos finais de tarde, os vizinhos normalmente reúnem-se para aulas de dança ou ginástica junto à costa.

As comunidades piscatórias referem que as suas vidas estão ameaçadas pela poluição de um porto petroquímico que se estende pela baía, onde um barco que transportava gás propano explodiu em 2013. Um grupo responsável por limpar o que foi derramado disse estar a monitorizar a baía para proteger as comunidades circundantes, mas Marizelha Lopes relembra como se perdeu uma temporada de pesca e turismo por causa da contaminação. “Não há ainda estudos específicos ou políticas públicas que garantam a nossa segurança”, afiança o seu sobrinho. “Não temos escapatória.”

A autoridade portuária não respondeu aos pedidos de comentário. Frustrada com a falta de respostas, a que chama de “racismo ambiental” contra a comunidade da ilha, Eliete Paraguassu, que, tal como Marizelha, pesca moluscos, está a dar o salto para a política.

No aquecimento para as eleições de 2 de Outubro, viajou para as cidades vizinhas para angariar apoio para a sua candidatura, com autocolantes onde se lia “O meu voto vai ser anti-racista” e “Justiça para Marielle”. A última é uma referência a Marielle Franco, congressista negra do Rio de Janeiro que lutou pela justiça racial e foi morta em 2018 – um caso a que muitos chamaram de assassinato político.

O seu legado tem sido um grito de mobilização para mulheres negras como Paraguassu. Dos 513 eleitos para a câmara baixa do Congresso em 2018, menos de um quarto identifica-se como negro – e apenas 12 desses são mulheres. Em contraste, nos censos de 2010, 50,7% dos brasileiros identificavam-se com as duas categorias raciais que a agência de estatística do Governo combina na sua definição de “negro”.

A dividir o tempo entre a pesca na Ilha de Maré e os estudos na universidade, Uine Lopes é um de uma mão cheia de estudantes determinados a trazer os frutos das suas investigações para a ilha. “Precisamos de estar alerta, para votarmos em tantas pessoas negras comprometidas com a luta quanto possível, que têm visões específicas para as comunidades indígenas, quilombolas, piscatórias, habitantes das margens dos rios e muitas outras comunidades que não contam com o apoio do Estado”, diz.

Marizelha não foi mais à escola depois de fazer o quinto ano. Mas ver o seu sobrinho a juntar os estudos com o serviço à comunidade inspirou-a. “Estou cada vez mais convencida que as universidades são importantes”, diz. “Mas a nossa resistência e luta são o que nos prepara para o confronto.”