Portugal
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Angel Olsen de regresso a casa: uma fera à solta no Capitólio

Há 12 ou 13 anos que Angel Olsen vem a Portugal, partilha a própria na segunda de duas noites no Capitólio, e ainda não sabe falar português. “Eu bem tento, mas depois toda a gente fala inglês comigo”, justifica-se, num de vários momentos de conversa que marcaram este seu regresso a Lisboa. Além de um ‘obrigado’ tímido, a cantora-compositora norte-americana arriscou, por estes dias em que foi turista na capital, cumprimentar com um “olá” bem redondo a um empregado de mesa “que afinal era de Denver”, conta risonha, espalhando a boa disposição numa sala cheia de gente entusiasmada por voltar a ver uma das artistas indie mais acarinhadas no nosso país. O carinho é recíproco: em entrevista ao “Expresso”, Angel Olsen explicou que a única parte má de começar as digressões europeias por Portugal é que, a partir daí, “é sempre a descer”. O facto de os portugueses “ouvirem mesmo as letras” pesa na cotação elevada que os concertos por cá têm no coração da mulher que, esta noite, se mostrou também fã das “pessoas simpáticas e dos bolinhos” de Lisboa. Mas todo este mel é temperado por uma saudável secura, que faz com que os agradecimentos e declarações de amor surjam, de forma quase furtiva, pelo meio de comentários sobre tuc-tucs ou a pandemia. Pode não falar a nossa língua, mas esta abordagem sem excesso de açúcar resulta na perfeição com um público que gosta de ser mimado, mas já leva muitos anos de concertos para perceber quando os piropos são ou não de circunstância. E depois há a música.

Tendo editado, este ano, o seu sexto álbum, “Big Time”, Angel Olsen tenta não se repetir - até porque, como confessou ao “Expresso”, vai-se cansando dos sons explorados em cada disco. A curiosidade em explorar novos planetas faz com que haja praticamente uma Angel para todos os gostos: do rock quase grungy de ‘Give It Up’, à indie pop orelhuda de ‘Shut Up Kiss Me’, passando pelo drama gótico de ‘Lark’ ou pelos momentos de guitar heroine a que se entrega no final de vários temas, o Capitólio assistiu, embevecido, a uma panóplia de facetas entre as quais a autora alterna sem deixar as costuras à mostra. A maior parte das fichas, contudo, é jogada em “Big Time”: o disco que foi gravar a Topanga Canyon, na Califórnia, depois da morte da mãe e do pai, no espaço de dois meses, e que quis que soasse simplesmente “clássico”.

Com Jonathan Wilson (conhecido com braço direito de Father John Misty) como produtor, Angel Olsen deu indicações simples para este seu novo capítulo: “Queria um pedal steel que soasse a pedal steel e a minha voz à frente, sem esquisitices”. Bastam os primeiros segundos da canção que abre o concerto, ‘Dream Thing’, para perceber que a sua voz está efetivamente à frente, mas também por cima, ao centro e a toda a volta, numa espécie de surround system emocional. Chega a impressionar como parece não fazer qualquer esforço para soltar este lamento que consola e abraça: eis uma mulher que nasceu para cantar, é a única conclusão que podemos tirar ao ver o seu uivo percorrer os quatro cantos de uma sala rendida.

Depois do algodão doce de ‘Dream Thing’ tocar todas as notas de “Big Time” - melancolia, superação e doçura -, a viagem por um dos álbuns mais bonitos deste ano prossegue, através do tema-título, da mais contemplativa ‘Ghost On’ (de ‘cauda’ elétrica e psicadélica) e de ‘Right Now’. Na plateia, cantam-se as letras novas com acerto e empenho; em palco, Angel solta um sorriso - ou “o” sorriso - e a eletricidade faz-se sentir. Num perpétuo misto de sedução e desafio, o centro de todas as atenções mostra-se em pleno controlo do ‘jogo’, tanto vocalmente como a nível de comunicação, brincando com o público quando anuncia que vai cantar uma canção nova, escrita na noite anterior e inspirada pelo turismo de Lisboa (era, na verdade, o seu maior êxito, ‘Shut Up Kiss Me’), ou interagindo com a sua banda (quatro mulheres e dois homens, distribuídos entre guitarra, baixo, teclas, bateria, violino e violoncelo).

Ao contrário do que é comum nas suas companheiras de ofício, em Angel Olsen um sussurro não é sinal de timidez, mas sim uma provocação, uma promessa ou até uma ameaça de algo maior ao virar do refrão. É assim em ‘Lark’, que do ambiente de perigo iminente, embalado por uma bateria de baixa tensão arterial, passa para um dos momentos mais gloriosos da carreira da nossa anfitriã. Antes, já ‘All Mirrors’, tema-título do álbum de 2019, fizera estragos quando o animal selvagem que é a voz de Angel Olsen se soltou - nunca com esforço, sempre com estrondo - sobre a plateia do Capitólio. Fazendo do lento mais lento e do alto mais alto, a jovem gere os contrastes e as tensões com uma maturidade que faz tudo parecer fácil. Porém, e como diria Tomberlin na primeira parte, “it's simple but it ain't easy”.

O regresso à country lânguida com ‘This Is How It Works’, a explosiva ‘Go Home’ (servindo, mais uma vez, de veículo à voz inacreditável de Angel Olsen) e a muito aplaudida ‘Sister’ ("sete ou nove minutos, dependendo de como a tocamos", foi avisando a ‘patroa’ da banda) foram conduzindo o espetáculo ao seu ocaso. Num concerto sem pontos mortos, novos picos de intensidade foram alcançados com ‘All The Good Times’, uma das mais triunfais canções de fim de relação que nos lembramos de ouvir, e ‘Chance’. Resgatada ao anterior “All Mirrors” e apresentada quase em registo de torch song, esta balada foi a despedida perfeita para uma noite cheia de ternura e classicismo, em que a voz de Angel Olsen voou com a imponência e a elegância de uma águia-real - mas onde o sentido de humor e a comunicação fácil impediram o virtuosismo de se tornar demasiado pomposo.

E por falar em virtuosismo, no único encore da noite todo o Capitólio entoou a letra de uma canção que Angel Olsen disse adorar cantar: conhecemos ‘Without You’ como um dos grandes êxitos de Mariah Carey (está no seu primeiro disco, “Musicbox”, de 1993), mas fora gravada anteriormente pelo bardo americano Harry Nilsson (1941-1994) e antes ainda pelos galeses Badfinger, que em 1970 a ofereceram ao mundo, sem imaginar que em 2022 a estaríamos a cantar com uma ‘miúda’ nascida em St. Louis, no Missouri, em 1987.

Insondáveis são os caminhos da música mas, como disse Angel Olsen nos seus agradecimentos finais, “it's scary out there”. Lá fora as coisas podem realmente meter medo, mas lá dentro - da sala do espetáculo e da obra desta fera - estamos bem. Estamos juntos, estamos com ela, e enquanto o concerto dura, vai (mesmo) correr tudo bem.

Na primeira parte, Sarah Beth Tomberlin, que usa o nome de família como nome artístico, aproveitou a ‘boleia’ de Angel Olsen para apresentar a sua folk acústica e delicada, provando o poder que uma voz e uma guitarra ainda podem exercer sobre uma plateia atenta. Brincando com pequenas mudanças de velocidade e com as possibilidades da sua voz, a norte-americana de 27 anos protagonizou ainda um momento emocionante, ao colocar o público a cantar a letra de uma canção que a maioria dos espectadores não conheceria segundos antes. Foi em ‘idnwntht’, acrónimo para "i don't know who need to hear this"…", segundo álbum para a cantora-compositora da Flórida que muitos terão saído da Capitólio com vontade de descobrir. ‘Stoned’ e ‘Happy Accident’, a pedido do público mais conhecedor, fecharam a contento uma atuação feliz, numa noite em que, do outro lado da avenida, tocou o brasileiro Emicida e, uns metros acima, o cinema São Jorge tinha também muita gente à porta. É bom estar de volta, disse Angel Olsen - e nós subscrevemos.