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“É possível sermos felizes mesmo tendo uma doença tão má como o cancro”: João da Silva partilha a experiência de quem o viveu três vezes

Aos 31 anos, João da Silva foi diagnosticado com um cancro no testículo. Ao contrário do que seria de esperar, a primeira reação foi de alívio. “Alívio porque não há nada mais perturbador que a dúvida e andava já há algum tempo a sentir-me fraco, sem perceber bem o que tinha. Ao ter um diagnóstico, pelo menos tinha alguma coisa a que me agarrar”, começa por partilhar, em conversa com o Expresso.

Além de pensar que teria elevadas possibilidades de cura, inspirou-o também o caso de Lance Armstrong, antigo ciclista norte-americano que teve o mesmo diagnóstico e conseguiu recuperar e voltar a competir. De acordo com dados do IPO de Lisboa, o cancro do testículo é “um tumor raro que se manifesta sobretudo em homens jovens, entre os 15 e os 35 anos” e, em Portugal, são diagnosticados “cerca de 200 novos casos por ano”.

Concluiu os tratamentos e, um ano depois, a doença regressou, “muito pior, muito mais espalhada”. “Aí foi um choque muito grande. Perceber que teria de passar por tudo outra vez foi particularmente duro.” Novo ciclo de tratamentos e foi dado novamente como curado. No entanto, após seis meses, a doença voltou. Além dos tratamentos habituais, teve de ser submetido a dois autotransplantes de medula. Mais tarde, fez hemodiálise durante um ano e meio, seguindo-se um transplante renal.

Desde então, “não há sombra da doença”. Agora com 47 anos, não sente que tenha obtido três vitórias sobre o cancro. “Tenho passado muito tempo a falar sobre isso e, de certa forma, a desmistificar essa ideia porque não sinto minimamente que tenha vencido rigorosamente nada. Lidei com aquilo e continuo a lidar à minha maneira porque a marca continua.”

Com estas vivências em mente, decidiu fazer uma caminhada que liga os três institutos de oncologia. Começa nesta quarta-feira, em Lisboa, e passa por Coimbra, com fim previsto para o Porto, a 10 de outubro. “Vou fazer 25 a 30 quilómetros por dia. Vou parar, vou fazer fotografias, vou escrever e tenho de ir andando também.” A chegada ao Porto é antecipada com entusiasmo. “Acho que me vai emocionar imenso. Já houve pessoas que me mandaram mensagem a dizer que vão estar à minha espera. Isso cria uma expectativa e uma responsabilidade avassaladoras.”

A ideia surgiu no final de agosto e foi rapidamente concretizada. “Ocorreu-me mostrar às pessoas que, apesar de termos tido doenças tramadas, podemos pensar em superar-nos”, conta. Sob o mote “um passo de cada vez”, o objetivo é o de “transmitir uma mensagem de esperança a quem lida com o cancro”, tanto os portadores da doença como familiares, amigos e profissionais de saúde. O propósito é, também, o de ajudar a Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro, através de uma campanha de angariação de fundos para apoiar a construção de uma casa de acolhimento para crianças e jovens que se deslocam para tratamentos no IPO de Lisboa.

Missão de vida

Em 2016, João da Silva publicou “O Sofrimento Pode Esperar”, livro em que relata as experiências que viveu. “O que me alimenta são as dezenas de pessoas que, ao longo destes anos, desde o lançamento do meu primeiro livro, me têm contactado para pedir a minha ajuda. Isso é o que mais me toca”, salienta.

Seguiu-se “Quantas vidas temos?”, lançado em 2019. “Tem a ver com as vidas que quase fui perdendo e que não perdi, mas é mais do que isso”, detalha. Hoje, responde que “temos muitas” vidas, numa alusão às diferentes fases e momentos ao longo do tempo, assim como às pessoas, “não só aqueles que conhecemos, mas também os nossos antepassados”. “Somos essas vidas todas.”

Ao longo dos últimos anos, e depois de uma carreira enquanto jornalista, tem dado palestras em que partilha as suas histórias. O trajeto percorrido levou-o a descobrir uma “missão de vida”: falar do que viveu e partilhar uma mensagem de esperança. “Alguém que está a viver um cancro e que vê alguém que passou por três experiências oncológicas graves e que acabou por ficar bem – hoje tenho um aspeto normal, sou uma pessoa normal – acaba por ter esperança”, justifica.

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Longevidade

Com o objetivo de poder falar e chegar a um maior número de pessoas, atribui o protagonismo à mensagem e não a si próprio. “A mensagem mais importante que tento sempre passar é que é possível sermos felizes mesmo tendo uma doença tão má como o cancro. Durante esse processo eu quis fazer mais qualquer coisa, quis superar-me.”

Aceitar aquilo que estava a viver foi um dos aspetos fundamentais. “Ao fazê-lo, comecei a encarar o cancro como uma coisa com a qual tinha de lidar”, explica. Apesar da agressividade dos tratamentos, que por vezes causavam “muita dificuldade em caminhar dez passos seguidos”, manteve a prática de exercício físico, estabelecendo metas. Também mudou a alimentação: tornou-se vegetariano e deixou de consumir açúcar. “Se me perguntar se isso é fundamental, não sei. Há-de haver correntes que dizem que sim, outras que dizem que não. Uma coisa é certa: sentia que estava a fazer alguma coisa para intervir no processo, tentava fazer a minha parte.”

Processo que também incluiu o acompanhamento de um mestre taoista – que desempenhou um “papel importantíssimo” –, com quem aprendeu a importância da respiração, numa “filosofia de vida muito simples”, que “respeita e observa a natureza e os seus ciclos”. Mas foi o amor pelo filho, ainda bebé na altura do primeiro diagnóstico, a funcionar como “motor maior”. Além disso, “estava sempre a rir”. “Sou uma pessoa bem-disposta, o que não deve ser confundido com otimismo. Se me posso considerar alguma coisa, é realista.”

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Antes e depois

João da Silva defende que realistas é o que os médicos devem ser quando lidam com pessoas com cancro, mas alerta para o cuidado necessário “com o que dizem e com a forma como dizem”, exemplificando com a frequência do uso da palavra “doente”, algo que socialmente é, muitas vezes, um rótulo.

Quando teve cancro pela primeira vez, diz ter sentido discriminação com os olhares alheios e até assustados perante um homem jovem sem cabelo e sem sobrancelhas e com uma “cor esquisita”. “O cancro não define quem sou. É muito triste catalogar as pessoas por isso. Qualquer pessoa que tenha uma doença oncológica acaba por ser vítima de discriminação, nomeadamente se quiser fazer um seguro de saúde ou um empréstimo para uma casa”, destaca.

Uma palavra que costuma ouvir depois de falar sobre a sua história é “lutador”, algo que as pessoas lhe dizem como forma de elogio. “Lutadores somos todos, todas as pessoas que têm uma doença ou não, que têm problemas, acabamos todos por ser lutadores. Eu só quis sobreviver. A partir desse momento, muita coisa mudou na minha vida também.”

“Eu só quis sobreviver. A partir desse momento, muita coisa mudou na minha vida também.”

A forma de estar e de ver a vida “mudaram completamente”. Se antes era uma pessoa “muito mais virada para as expectativas e apreciação dos outros”, tornou-se “mais criterioso naquilo que realmente é importante”. Foi por isso que “deixou de ter pressa” – o que inclui conduzir devagar, por exemplo – e começou a “dar muito mais atenção” ao tempo, nomeadamente com a família. “É um processo, são coisas que quis fazer, em que me quis tornar. Tentei seguir um caminho em que me sentisse mais calmo, a aproveitar a vida melhor”, sintetiza.

Procurar ser mais tolerante e aberto, respeitando “o espaço e o tempo dos outros”, surge num contexto em que “se vê a vida ameaçada”, com uma perceção da “questão da finitude”. “Achamos que somos eternos. Tudo passa e nós também havemos de passar”, aponta. É neste sentido que tenta transmitir a quem o ouve ou lê a importância de “relativizar os problemas” e do foco “naquilo que é bom”. “Passar de um estado de tristeza ou de irritação para um estado em que estamos normais ou mais alegres às vezes não é difícil, é uma questão de decisão, de olharmos bem para a coisa e dizer assim: mas vale a pena estar chateado por causa disto?”.

No fundo, acaba por ser um “convite à reflexão”. É o que espera que as pessoas façam depois de ouvirem as histórias que tem para contar, deixando-as a pensar numa pergunta: “Será que estou a aproveitar a vida da melhor forma?”. A resposta caberá a cada um, mas João da Silva defende que há algo em comum. “Estamos todos à procura do mesmo: de ser felizes, cada um à sua maneira.”