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Jorge Palma no Palácio Baldaya, Lisboa: Duas horas a sós no lado certo da noite

A partir do próximo mês de outubro, Jorge Palma dará cinco concertos especiais, debruçando-se, em cada um deles, sobre vários dos seus álbuns mais marcantes. O encontro está marcado para o Teatro Tivoli, em Lisboa, onde atuará com a sua banda, e para o Capitólio, do outro lado da Avenida da Liberdade, onde promete “partir tudo” com o reunido Palma's Gang. A viagem por um passado muito presente, porém, começou nesta noite de domingo, com um espetáculo delicado mas vigoroso nos jardins do Palácio Baldaya, em Benfica. Perante uma plateia sentada e atentíssima, bebendo cada palavra e nota do seu herói, um dos grandes autores da música portuguesa começou por recordar “Só”, o álbum de voz & piano de 1991, precisamente nesse formato. Nos generosos encores, passou por outros temas, seus e de alguns dos artistas que admira, numa espécie de homenagem aos gigantes em cujos ombros se apoia para erigir a sua própria obra. “Obrigada por me proporcionarem esta alegria”, agradeceu a certa altura, com uma humildade que pontuou toda a noite, a par da vontade de tocar estas canções que mil vezes lhe terão saído dos dedos com charme, graça e acerto.

Tudo começou pouco depois das nove da noite, numa solidão que espelha a natureza de “Só”, o álbum que esta noite se revisita. Ideia de Tó Zé Brito, na altura diretor de A&R da editora Polygram, o único disco a solo de Jorge Palma na década de 90 nasceu nos estúdios da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, na companhia singela de um piano Steinway e cinco microfones, como recordaram os envolvidos na gravação há seis anos, numa entrevista ao “Observador”. Para aquela semana de gravações, solitárias mas descontraídas, o músico, que acabara de lançar “Bairro do Amor”, escolheu 15 canções do seu repertório que aguentassem ser reduzidas ao seu esqueleto, e tocadas apenas ao piano, e acabou por gravar um álbum emblemático, cristalizando para a posteridade versões de temas seus, nalguns casos com arranjos criados para a ocasião.

31 outonos mais tardes, nos jardins de um palácio do século XVIII, é mais uma vez às suas canções e ao seu piano - desta feita, um Yamaha - que Jorge Palma vai entregar a sua fé. Consigo, o artista de 72 anos traz também um caderno com aquilo a que chama “cábulas” - auxiliares de memória que, à primeira brisa mais forte, esvoaçam e caem do piano. O homem da noite ri, o seu assistente - munido de uma mola - resolve e tem começo o recital, com ‘Uma Viagem na Palma da Mão’, da estreia homónima de 1975. Quem sabe se nervoso como nas provas do Conservatório, onde contou ter sido o aluno mais velho da escola, Jorge Palma não precisa de cábulas para a voz cálida com que aquece esta noite outonal. Se, durante as gravações de “Só”, a intenção passou por captar “os sentimentos”, como se explica no mesmo artigo já referido, neste domingo todos eles parecem ter sido libertados a contento. E o público teve nessa partilha um papel importante.

Logo ao segundo tema, ‘O Meu Amor Existe’, a plateia sussurra o corolário lógico do poema. Seguem-se ‘Na Terra dos Sonhos’, com Jorge Palma a aplicar iguais doses de ternura e da boémia que outrora o animou, e uma introdução pomposa para ‘Deixa-me Rir’, êxito que solta, na plateia, os primeiros gritos de entusiasmo e também o primeiro de muitos coros acertados. Numa noite de sorte, o público pôde ouvir, sem mais delongas, outro dos êxitos do cantautor: ‘Dá-me Lume’. E, por muito que o português médio já tenha visto, provavelmente, pelo menos um concerto de Jorge Palma na vida, não deixam de espantar alguns pilares do seu espetáculo. O primeiro é a aparente simplicidade como parte da sua paixão por música clássica, folk, rock ou música popular portuguesa para confecionar uma poção tão personalizada e inconfundível. A outra é o milagre de canções de décadas distantes, e distintas, estarem a envelhecer da melhor forma, ou seja, ganhando significados, nuances e corpo.

A experiência não impede, ainda assim, que Jorge Palma acuse a pressão dos momentos importantes. E, com sinceridade desconcertante, nem sequer o esconde: “Já me está a passar o frio… e os nervos”, confessa, depois de uma muito aplaudida ‘Esta Miúda'. Nas suas faces lunar e solar, ‘Canção de Lisboa’ causou comoção, antes de, exatamente às 21h37, uma manta de luz se derramar sobre os jardins o palácio. Quando gravou ‘Estrela do Mar’, canção de 1984, em “Só”, o seu criador ofereceu-lhe um novo arranjo, na tentativa de replicar as ondas do mar. Em 2022, o tema conserva a magia dos elementos e da música que é para sempre. Nem é preciso lembrar o silêncio dos últimos dois anos para perceber como é um luxo estarmos aqui, neste serão, a sermos brindados com um alinhamento de sonho.

No departamento das letras que se revelam mais atuais do que nunca, destaque para ‘À Espera do Fim’, do álbum “Acto Contínuo”: “Vou dizendo sim à engrenagem/E ando muito deprimido/É difícil encontrar quem o não esteja/Quando o sistema nos consome e aleija”, escrevia Jorge Palma em 1982, provando que certas angústias não têm tempo. No capítulo “canções que são casa”, vão a jogo ‘Bairro do Amor’ - com o público a assistir prontamente o músico, quando ele se engasga a cantar as suas “nódoas negras sentimentais” - e ‘Jeremias, o Fora da Lei’, precedida de um aviso: “Eu à guitarra sei a letra toda, mas ao piano é tecnicamente mais difícil. Vou prestar mais atenção aos dedos.” “Vai correr bem!”, é o grito de apoio que de imediato se ouve entre as almas que esgotam este concerto.

Antes do primeiro encore, Jorge Palma voltou ao seu primeiro disco para “fazer a cama” ao clássico ‘Só’, de 1989, com as veteranas ‘Dizem que Não Sabiam’ e ‘O Fim’, da estreia de 1975. A transição entre poemas (de “e foi nesta viagem que eu percebi que não estou só…” para “… só por existir”) acariciou ouvidos e corações, numa plateia onde era evidente a presença de fãs conhecedores.

Na prolongada reta final, dividida por dois encores, Jorge Palma dividiu-se entre prestar homenagem aos seus heróis - de Beethoven, ainda antes do primeiro adeus, a Léo Ferré ('Avec le Temps'), Leonard Cohen ('Bird on a Wire') ou Carlos do Carmo, para quem escreveu ‘Canção de Vida’ - e recuperar temas menos óbvios da sua lavra, como ‘Valsa dum Homem Carente’, com letra de Carlos Tê (incluída em “Norte”, de 2004), ‘Disse Fêmea’, que escreveu para a peça de teatro “Carta a uma Filha”, nos anos 90, ou ‘Mifá’, de 1982.

Por esta altura, já se passaram quase duas horas sobre o começo do primeiro espetáculo da série “Antologia”, que prossegue em outubro no Tivoli, e Jorge Palma, fresquíssimo, voa com toda a leveza sobre as teclas do seu piano, como se pudesse ficar connosco toda a noite, contando como Carlos Tê lhe “espetou” a letra de ‘Valsa dum Homem Carente’ à frente, e de como lhe respondeu com uma música em 15 minutos, ou - num exemplo oposto - de como demorou 30 anos a ter uma ideia para a canção que Carlos do Carmo lhe pedira, explicando a essa luz, e com humor, o duplo sentido do título ‘Canção de Vida’ (ou devida). Também a correspondência com Herberto Helder, a propósito do pedido de desculpas de Jorge Palma por, em 1989, ter gravado uma canção com o título ‘Passos em Volta’, foi recordada entre sorrisos. “Oh Jorge Palma, a gente não tem pachorra para essas coisas”, ter-lhe-á respondido o poeta.

Em entrevista recente, falava-nos a brasileira Bia Ferreira do poder transformador de um espetáculo e daquilo que sempre levamos para casa após assistir aos mesmos. Se no caso da cantora e ativista brasileira a mensagem será um despertar de consciência social e política, com Jorge Palma o bilhete imaginário que nos colocou no bolso fala em olhar para o outro, sorrir perante a adversidade e encarar cada dia novo com uma sensibilidade poética que é só sua - mas felizmente para todos nós, falantes de Português, é pessoal e transmissível.

Jorge Palma nos jardins do Palácio Baldaya, Lisboa, 25 de setembro de 2022

1. Com Uma Viagem na Palma da Mão


2. O Meu Amor Existe
3. Terra dos Sonhos
4. Deixa-me Rir
5. Dá-me Lume
6. Essa Miúda
7. Canção de Lisboa
8. Estrela do Mar
9. À Espera do Fim
10. Bairro do Amor
11. Jeremias, o Fora da Lei
12. Frágil
13. Dizem que Não Sabiam/O Fim
14. Só
15. A Gente Vai Continuar
16. Sonata de Beethoven

Encore 1


17. Avec le Temps (Léo Ferré)
18. Canção de Vida (escrita para Carlos do Carmo)
19. Valsa dum Homem Carente
20. Bird on the Wire (Leonard Cohen)
21. Disse Fêmea
22. Portugal, Portugal

Encore 2.


23. Passos em Volta
24. Lado Errado da Noite
25. Mifá
26. Balada dum Estranho