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No Olimpo: à luz de Eliot, ao som de Chico

Síncronas, ondeiam no silêncio. Um só corpo, um só âmago. Ora se aquietam, ora se agitam. Ora se revelam, ora se ocultam. Exalam dor e mágoa, alento e esperança. São água e sal do mesmo mar. Areia e pó do mesmo chão. Nunca se apartam. Diluem-se em cadências de palavras, em torrentes de sentidos.

Ancoradas no lado espiritual e intangível da existência, música e poesia não se definem — vivem-se, sentem-se.

No ensaio The Music of Poetry (1942), T. S. Eliot perscruta esta comunhão e reflecte sobre linguagem, melodia, dissonância — elementos da arte musical e poética. Eliot divisa analogias na forma de desenvolver temas e ideias, assinalando a omnipresença do sentido rítmico. No que tange à estrutura, sustenta que a poesia pode conter transições comparáveis aos andamentos de uma sinfonia. E admite que um poema floresça numa sala de concertos.

Em Four Quartets (1943), Eliot materializa a simbiose, elidindo fronteiras. Do título, flui o intento. Inspirado por Ludwig van Beethoven, o poeta divide cada um dos carmes da obra transcendental (Burnt Norton, East Coker, As Dry Salvages, Little Gidding), publicados separadamente entre 1936 e 1942, em cinco movimentos, tantos quantos os de String Quartet N.º 15, Op. 132, peça incessantemente tocada no seu gramofone. Dos trechos compostos pelo alemão (Assai sostenuto — Allegro; Allegro ma non tanto; Molto adagio; Alla marcia, assai vivace; Allegro appassionato), fonte inesgotável de estudo, Eliot extrai a arquitectura e a miríade de partículas da articulação musical. Num vaivém de palavras tensas ou refreadas, leves ou impetuosas, entretece o leitmotiv e funde os dois mundos em crescendos, diminuendos, pausas, repetições.

Nos versos de Burnt Norton, o mais contemplativo dos quartetos, que diz ser irredimível o tempo, imortaliza-se a união: “Words move, music moves / Only in time; but that which is only living / Can only die. Words, after speech, reach / Into the silence.”[1]

No Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, Vasco Botelho de Amaral assevera que filologia e música não são irreconciliáveis. Em busca de origens e linhagens, o eminente Professor ensina que o termo “música” se enraíza na antiguidade helénica. Declarando-se melómano, celebra a universalidade da “irmã gémea da poesia e da dança”, concluindo ser “expressão de Beleza”.

Em grego, mousiké tekhné é a arte das Musas, filhas de Zeus (guardião da ordem e justiça no mundo, deus dos deuses) e Mnemósine (deusa da memória). Os seus hinos e coros todos inebriam. A sua missão, porém, não se esgota no canto — liga-se ainda às letras e ciências. Pelo mundo, espalham eloquência, criatividade, persuasão. Majestosamente, ajudam os reis a alcançar a paz entre os homens.

A literatura acolhe incontáveis exemplos dos dons e magnificência das Musas. Na Teogonia, Hesíodo confessa ter recebido destas um ceptro — “rebento de loureiro robusto, maravilhoso” — e a missão de celebrar “as coisas que serão e as que são”.[2] Na Ilíada, Homero louva-lhes a sapiência, a ubiquidade: “Dizei-me agora, ó Musas que no Olimpo tendes vossas moradas — / pois sois deusas, estais presentes e todas as coisas sabeis […]”.[3] No dealbar da Odisseia, antes de nomear o seu herói, o poeta expressa um desejo: “Fala-me, Musa, do homem versátil que tanto vagueou, / depois que de Troia [sic] destruiu a cidadela sagrada.”[4]

Eis os ofícios das nove divindades. Calíope ocupa-se, desde a época alexandrina, da poesia lírica. O domínio da história está atribuído a Clio. Érato, a amável, também se encarrega da poesia lírica, especialmente a de matriz amorosa. Euterpe, associada à flauta e coroada de flores, ilumina a arte musical. Melpómene, a tragédia. Polímnia, inventora da lira, dedica-se à pantomima. Tália preside à comédia. Terpsícore, à poesia ligeira e à dança. Urânia é o farol da astronomia.

Música e poesia sobrevoaram todas as eras, contemplando vitórias, desventuras, metamorfoses. Conquistaram povos, territórios. Erigiram línguas, dialectos. Percorreram o trilho que une passado e futuro.

Na lusofonia, muitos velam a aliança. Vasculho o coração e encontro Chico Buarque: “mestre da língua” e “criador de melodias bruscas, nítidas”, como um dia escreveu Tom Jobim. Chico orquestra sons e palavras, transformando canções em imagens correntias. Na sua voz, o garbo da valsa, a flama do samba, a doçura da bossa nova.

Lembro as proparoxítonas de Construção. Acentuado na antepenúltima sílaba, o derradeiro vocábulo de cada alexandrino clássico é o lamento que ressoa, a nota que se demora: “Amou daquela vez como se fosse a última / Beijou sua mulher como se fosse a última / E cada filho seu como se fosse o único / E atravessou a rua com seu passo tímido / Subiu a construção como se fosse máquina / Ergueu no patamar quatro paredes sólidas / Tijolo com tijolo num desenho mágico / Seus olhos embotados de cimento e lágrima / Sentou pra descansar como se fosse sábado / Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe / Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago / Dançou e gargalhou como se ouvisse música / […]”.

Em O Que Será (Flor da Terra), voluteia, dubitativa, a anáfora. A repetição dos mesmos termos no limiar de versos sucessivos é a espada que lancina o pensamento: “O que será que será / Que andam suspirando pelas alcovas / Que andam sussurrando em versos e trovas / Que andam combinando no breu das tocas / Que anda nas cabeças, anda nas bocas / Que andam acendendo velas nos becos / Que estão falando alto pelos botecos / Que gritam nos mercados, que com certeza / Está na natureza, será que será / O que não tem certeza nem nunca terá / O que não tem conserto nem nunca terá / O que não tem tamanho / […]”.

Timbres consonânticos, aliterantes irrompem em Januária: “Toda gente homenageia / Januária na janela / Até o mar faz maré-cheia / Pra chegar mais perto dela / […]”.

Obsessiva epífora desponta em Qualquer Canção. O amor reincide, permanece: “Qualquer canção de amor / É uma canção de amor / Não faz brotar amor / E amantes / Porém, se essa canção / Nos toca o coração / O amor brota melhor / E antes / […]”.[5]

Em cada frase despojada, vislumbres de vida ou morte. Em cada nota solitária, assomos de harmonia ou caos. Sombrias ou iridescentes, música e poesia tardam nos dias. Derramam encantos, segredos. Destilam realidades, memórias. Enleadas, inundam de sonhos o caminho.

E quando a luz esmaece e os olhos se fecham, o som movediço das palavras ecoa e perdura na escuridão.

[1] As palavras movem-se, a música move-se / Apenas no tempo; mas o que somente vive / Pode somente morrer. As palavras, depois da fala, alcançam / O Silêncio. (T. S. Eliot, Poemas Escolhidos, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2016.)

[2] Poesia GregaDe Hesíodo a Teócrito, Lisboa: Quetzal Editores, 2020.

[3] Homero, Ilíada, Lisboa: Quetzal Editores, 2019.

[4] Homero, Odisseia, Lisboa: Quetzal Editores, 2018.

[5] As letras de Chico Buarque, antecedidas de reportagem biográfica da autoria de Humberto Werneck, estão reunidas na obra Tantas Palavras, de 2019, editada pela Companhia das Letras.