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NOS Primavera Sound: os Gorillaz de Damon Albarn deram um concerto de sonho, para a história do festival

Depois de três dias de muita música, o que num evento desta dimensão naturalmente corresponde a surpresas, confirmações e desilusões, o NOS Primavera Sound fechou a sua programação, no palco principal, com chave de ouro. Os Gorillaz, a super banda animada de Damon Albarn - o homem que, como escreveu o site "Stereogum", ousou ser uma estrela pop duas vezes, em registos bem diferentes - vieram ao Parque da Cidade dar um concerto que foi não só uma das atuações cimeiras desta edição, como muito provavelmente um dos espetáculos mais memoráveis do festival que se realiza no Porto há dez anos.

Formados como reação à cultura da MTV e das bandas manufaturadas, mas habitando, em sentido lato, o mesmo universo pop, os Gorillaz só tinham estado em Portugal por duas vezes, precisamente para eventos ligados àquele canal televisivo. O concerto no Primavera Sound, nove anos depois de Damon Albarn se apresentar aqui com os Blur, foi assim o primeiro encontro com o público português (e não só), num formato mais convencional. Mas não há nada de convencional no brilhantismo com que a banda e os seus convidados de luxo se entregam à plateia da Invicta. "Público incrível, energia incrível", elogiou a certa altura um muito sorridente Damon Albarn. Mas o mesmo se pode dizer do versátil músico londrino. Aos 54 anos, o homem dos Blur (e dos Good, Bad and the Queen, entre outras aventuras) impressionou pela forma como, à frente de uma banda fabulosa, conciliou na perfeição os papéis de capitão (chamando os convidados, tocando o barco para a frente) e de protagonista (tocando guitarra e piano, cantando maravilhosamente, interagindo com o público). Por várias vezes, desceu ao fosso, onde não quis fotógrafos, contactando livremente com os fãs, em perfeito delírio. Aliás, a imagem de Albarn empoleirado nas grades, com os seguranças a agarrá-lo pelas calças, foi uma repetição do que se passou neste mesmo parque com Blur, em 2003. Esperamos voltar a ver este entusiasmo daqui por mais nove anos...

Por muito que a efervescência dos Gorillaz contraste com a apatia de outros artistas que vimos por estes dias, não é esse o único trunfo da banda. A incrível musicalidade do todo, o ecletismo das canções (do rock mais apunkalhado ao dub, do hip-hop à música "do mundo") e a aparição não anunciada de vários convidados, como Beck, fizeram com que o nível altíssimo com que o concerto se iniciou se mantivesse ao longo de hora e meia.

Tudo começou com um "OLÁ" escrito nos ecrãs gigantes. Algures entre os Pink Floyd ("Is there anybody out there?") e os Massive Attack, que também traduzem as mensagens para a língua de cada país onde atuam, estava aberto o baile. Tendo em conta que os Gorillaz se apresentam em vários formatos, foi com alegria que vimos surgir em palco, de blusão rosa choque e boné com o nome da sua segunda 'encarnação', Damon Albarn. Como seria de esperar, foi de altíssimo gabarito o espetáculo visual que foi acompanhando a música desta banda desenhada por Jamie Hewlett, e as personagens animadas que iam dando a 'cara' nos ecrãs eram recebidas com a excitação de artistas de pele e osso. Com a voz, o carisma e a vontade de estar em palco em pico de forma, Damon Albarn vai cantando em dueto virtual com Robert Smith, dos Cure (em 'Strange Timez'), pergunta se seremos as últimas almas vivas (em 'Last Living Souls') e vai passando uma mensagem importante e atual, muito ancorada na ecologia, sem qualquer moralismo. Aliás, a 'lição' dos Gorillaz é sempre divertida, celebratória, eletrizante e cheia de grandes canções, sem quebras de ritmo ou momentos mortos. À semelhança de Nick Cave, os ingleses são cabeças de cartaz de pleno direito, conseguindo conquistar a atenção (e devoção) da plateia sem comprometer a sua visão.

Depois de dois 'episódios' que levaram o público ao êxtase - 'Tomorrow Comes Today', com Albarn na melódica, e a rockalhada de 'Rhinestone Eyes' -, começou o desfile não anunciado, e por isso ainda mais saboroso, de convidados. O primeiro senhor a aparecer foi Beck, que ainda ontem pisou este mesmo palco (pelo recinto continuam também, um ou dois dias depois de terem atuado, Stephen Malkmus dos Pavement e Kim Gordon). Com o mesmo chapéuzinho da véspera, Mr. Hansen juntou-se ao seu contemporâneo para cantar 'The Valley of the Pagans', canção que gravou no mais recente trabalho dos Gorillaz, de 2020. Depois de 'Oh Green World', que alternou entre a delicadeza de Damon Albarn ao piano, de carapuço rosa na cabeça, e várias pequenas explosões, veio 'On Melancholy Hill', recebida com gritos de alegria e cantada em dueto pelo sorriso do cantor, desarmado, e pelo seu público.

Para 'Kids With Guns', foi chamada para a frente do palco uma das cantoras do coro soul de cinco vozes que acompanha os Gorillaz; a forma como a artista, cujo nome infelizmente desconhecemos mas prometemos procurar, foi dos zero aos cinco mil, em poderio vocal e intensidade, foi um de vários momentos para o arrepio de uma noite quente. Mas a emoção iria repetir-se, uma e outra vez: o rapper norte-americano Bootie Brown pôs, em 'Stylo', toda a gente a dançar como se não houvesse amanhã (neste festival não há, na verdade) e Fatoumata Diawara, cantora da Costa do Marfim, surgiu em palco com uma elegância e uma confiança de tal forma avassaladoras que Damon Albarn a recebeu quase como se não a esperasse. Deu a (magnífica) voz a 'Desolée', pouco antes de, ainda fresca de um concerto triunfal no palco Cupra, Little Simz partir tudo (é uma metáfora, mas por pouco) em 'Garage Palace'.

Na plateia, poucos acreditariam que o concerto ainda reservasse mais surpresas, apesar de ninguém arredar ou pé ou mostrar sinais de cansaço. Mas os Gorillaz ainda tinham mais alguns 'truques' na manga, como o regresso de Bootie Brown, um dos fundadores dos Pharcyde, para cantar 'Dirty Harry', momento que levou uma espectadora a exclamar, no final: "everyone is healed!" (Todos estão curados). E, por falar em cura, logo de seguida tivemos Kelvin Mercer, aka Pos, dos De La Soul, a falar-nos da importância de mostrarmos os nossos sentimentos. No bolso, o norte-americano trouxe 'Feel Good Inc.', e a euforia que se instalou no recinto deixou certamente toda a gente de bem com a sua saúde emocional.

Ironicamente, e depois de um espetáculo inacreditável, a nível artístico, sonoro e visual, uma falha no som fez que não ouvíssemos as últimas palavras de Damon Albarn, que agradeceu em surdina depois da última bomba que, com a sua orquestra da alegria, ofereceu ao Parque da Cidade. Duas ou três notas na melódica e até gargalhadas de excitação se ouviram atrás de nós, com a chegada de 'Clint Eastwood', o primeiro single dos Gorillaz, lançado há 21 anos, e a canção que todos iremos trazer na cabeça nos próximos dias.

Podemos não ter ouvido a sua despedida, mas reconhecemos no olhar de Damon Albarn a felicidade com uma noite que não será facilmente esquecida, nem por quem esteve em palco, nem por quem, cá em baixo, se maravilhou com o poder que um concerto ainda pode ter.