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Silêncio que se vai cantar a 'soul'. Michael Kiwanuka, um gigante no Campo Pequeno

A história de Michael Kiwanuka poderia não ter tido sequer um princípio, caso os seus pais não tivessem conseguido escapar ao brutal regime ditatorial de Idi Amin, mudando-se do Uganda para o Reino Unido, onde o músico nasceu e cresceu. Poderia não ter tido um meio, se não tivesse enveredado por uma carreira a solo após ter colaborado com rappers como Chip e Bashy, merecendo a atenção da Communion Records, primeiro, e de Adele, depois, cujos espetáculos abriu em 2011.

Mas - e assumimos o risco de estar a colocar a carroça à frente dos bois, como diz a gíria popular - é possível que não vá ter um fim tão cedo. Prova disso é o que já alcançou, com apenas três discos: o prémio Sound of 2012, da BBC, um Critics' Award, Álbum do Ano para a Worldwide Awards, Melhor Artista Global para os HiPipo Music Awards e, melhor que todos estes, o cobiçado Mercury Prize, um dos prémios mais importantes, se não o mais importante, da indústria discográfica britânica.

Se esses prémios não contam, por serem ou financiados ou atribuídos por entidades onde o público em geral não tem qualquer peso, dê-se então voz a esse mesmo público. Milhares de cópias vendidas, salas cheias por onde passa. A desta noite, o Campo Pequeno, em Lisboa, não foi exceção. Mesmo com a forte concorrência da seleção nacional de futebol e/ou do Festival Iminente, o público acorreu em massa para testemunhar, in loco, o regresso de Michael Kiwanuka à capital, cidade onde só atuou por uma vez: no Super Bock Em Stock, em 2019.

Foi preciso, no entanto, esperar. E muito. Anunciados em 2020, estes concertos (lembrar que o músico tocou na passada sexta-feira no Porto) sofreram sucessivos adiamentos devido à pandemia da covid-19. Chegados enfim ao dia, os presentes tiveram ainda que aguardar pelo final do concerto de Mychelle, encarregue de abrir as hostilidades, e pela hora em que Kiwanuka subiu ao palco, com a impaciência a tomar a forma de um coro de assobios sempre que no PA se escutava o início de uma canção nova. Como quem espera sempre alcança, vimo-lo juntar-se à sua banda, feita de sombras, atirando-se de imediato a ‘Piano Joint (This Kind Of Love)’.

Uns batem palmas tímidas, outros insistem para que estes se calem. No meio daquela quiet storm, o mais interessante foi esta busca pelo silêncio - como se o mais leve murmúrio entre o público levasse Michael Kiwanuka a partir-se em mil pedaços, como se o mais ténue dos gestos levasse aquela chama a apagar-se. O Campo Pequeno de imediato se transformou numa madrugada boémia em bar, onde o cheiro a álcool e a tabaco tende a misturar-se com a melancolia. Quiet storm de pouca dura: depressa se ouve o rosnar elétrico de uma guitarra, o riff saárico de ‘One More Night’, com o solo a arrancar gritos entusiastas.

É na guitarra elétrica que encontramos a maior verdade de Kiwanuka, apesar de - ou ainda mais que - o ritmo, que parece vindo da Alemanha da autobahn, ou das teclas, pura soul a desfazer-se no ar. A mistura é hipnótica, as luzes ajudam no transe (quando não incomodavam ao ponto de termos de desviar o olhar do palco). ‘You Ain’t the Problem', com trinados de wah-wah, foi um ponto alto. O puro psicadelismo de ‘Rolling’, logo a seguir, foi outro. E tudo isto sem pausas entre canções, e com um mero «como estão, Lisboa?» colocado a cuspe no final de uma delas. Como se neste concerto, o último da sua nova digressão, Michael Kiwanuka fosse um homem esfomeado à procura do seu sustento. As palavras não servem para nada quando se está de barriga vazia.

Um momento gospel, acompanhado por algumas palmas, no início de ‘Black Man In A White World’ (que contou com um novo solo, metálico, lamentoso) não escondeu alguma ironia: bastava olhar para os tons de pele ao redor. O público mantinha-se estático, silencioso, sabendo que, àquela velocidade, qualquer distração iria levar a que se perdesse qualquer coisa na música - uma nota, um acorde, um momento que fosse. Raramente se vê um artista a prender uma plateia desta forma só com a força de uma canção, ou de várias. Como ‘Rule the World’, em que foi só ele, a guitarra, e uma das vozes do coro, Emily Holligan, que ao atingir algumas notas mais altas ganhou um dos maiores aplausos da noite. ‘Hero’ mostrou toda a magia que uma guitarra ainda pode ter, puro psicadelismo hendrixiano; ‘Light’, que descreveu como uma das suas canções favoritas, num dos poucos momentos em que se digiriu ao público, encantou com todo a emoção positiva que carrega.

Até final, ainda se ouviria ‘Solid Ground’, com Kiwanuka ao piano, antes de um encore que começou como a banda entrou: na sombra, a luz recortando só as figuras. Descrevendo a sua presença nos mais variados palcos de todo o mundo como “um sonho tornado realidade”, o músico agradeceu a hospitalidade com “uma canção antiga”, ‘Home Again’, antes da apoteose final com ‘Cold Little Heart’ (onde alguns pularam das cadeiras e a esmagadora maioria acompanhou pelos ecrãs dos seus telemóveis) e ‘Love & Hate’ (com um “adoramo-vos” subtilmente colocado no refrão). Um ranger elétrico a terminar e uma certeza: se esperar tanto tempo leva a concertos tão extraordinários, há que começar a acreditar a sério na virtude que existe na paciência.