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Violência sexual: Lina retratou mulheres que lutam contra a vergonha de serem vítimas

Quantas mulheres já caminharam na rua e ouviram insinuações de cariz sexual inapropriadas? Quantas já tiveram partes íntimas dos seus corpos tocados sem o seu consentimento? Quantas já assistiram, sem quererem, a actos sexualmente exibicionistas? Quantas já tiveram relações físicas de intimidade sem que realmente as desejassem, sob pressão do seu parceiro?

As muitas mulheres que partilharam com a fotógrafa Lina Geoushy as suas histórias de assédio e abuso sexuais escolheram, na sua maioria, manter o anonimato. O motivo pelo qual decidiram fazê-lo coloca em evidência o estigma associado a estes fenómenos; mesmo que estas mulheres sejam, de facto, as vítimas, não são capazes de sacudir o sentimento de vergonha quando abordam publicamente o assunto ou o incidente que as marcou.

"Quando algo acontece a uma mulher, no Egipto ou mesmo no Reino Unido, as pessoas tendem a criticar o seu comportamento, as suas roupas, onde estava e a que horas", contou Lina ao P3, em entrevista a partir de Londres, onde reside há um ano. "Culpar e envergonhar a vítima é abusivo; as pessoas deveriam, em vez disso, direccionar a sua atenção para o perpetrador." 

O projecto Shame Less: A Protest Against Sexual Violence, recentemente distinguido pelo prémio Female in Focus, foi criado pela egípcia com o objectivo de trazer luz sobre este tipo de crime. "Pretendo descortinar os vários factores e cenários relacionados com este tipo de violência, quando tem por base o género", pode ler-se no site da autora. Quer "expor as nuances das mundividências e dos contextos que culminam no desligamento, normalização e permissividade relativamente a este tipo de violência".

Lina Geoushy deu início ao projecto em Dezembro de 2020, no seguimento do estalar mediático do caso Fairmont, que levou o movimento #MeToo até ao Egipto. O caso, que só foi conhecido em Julho de 2020, embora tenha ocorrido em Abril de 2014, diz respeito a uma violação em grupo perpetrada por nove jovens rapazes, com recurso a GHB, conhecida como a "droga da violação". "Para muitas mulheres [egípcias], o caso reacendeu um trauma colectivo", explicou Lina à plataforma WePresent. "As pessoas começaram a partilhar as suas histórias nas redes sociais, revelando a magnitude do problema."

De acordo com um relatório publicado, em 2013, pelas Nações Unidas, 99,3% das mulheres residentes na capital egípcia já tinham experienciado assédio sexual ao longo da vida; 82,6% afirmou não se sentir segura em lugares públicos. Lina, que foi sujeita a violência sexual nas ruas de Cairo, diz-se "enraivecida pela normalização do problema e pelo trauma perpétuo gravado na mente de todas". 

"Este tipo de crime acontece em todos os lugares, nos locais de trabalho, em casa, nas ruas, e se as mulheres os reportam são responsabilizadas, culpadas, ameaçadas, humilhadas e convidadas a reinterpretar o que lhes aconteceu até serem silenciadas." Cansada, uma das mulheres retratadas por Lina Geoushy desabafou que "é impossível pensar que, algum dia, uma mulher que viva no Egipto possa andar nas ruas sem ser verbalmente assediada".

A egípcia corrobora. "A forma mais comum de assédio é verbal, sob forma de piropo ou insinuação de cariz sexual. Também é frequente o abuso físico em transportes públicos, assim como a violação em contexto conjugal e, mais recentemente, o femicídio." No Egipto, sublinha, as mulheres podem trabalhar, estudar, praticar desporto, "mas a violência contra elas está entranhada no interior das casas e nas ruas". A cultura egípcia, evidencia, é "extremamente patriarcal".

Em Dezembro de 2020, determinada a chamar a atenção para o flagelo, a fotógrafa publicou um apelo através do Instagram. "Lancei um convite a pedir a participação num projecto sobre mulheres que sofreram violência sexual em espaços públicos e privados, no Cairo", relata. "Encontrei-me com as participantes um par de vezes e conversei longamente com elas antes de as fotografar."

Lina sentiu, desde o início, que um retrato fotográfico clássico não faria justiça às histórias e memórias que cada mulher carrega consigo e optou por "colocar sobre as imagens os textos manuscritos por cada uma". "E uma máscara dourada sobre os rostos, que protege a identidade da vítima, valorizando, ao mesmo tempo, o seu testemunho." A egípcia considera o diálogo entre a fotografia e o texto "essencial" no projecto que continua em desenvolvimento. "Só assim se pode navegar uma problemática tão traumática e endémica", justifica.

A série de imagens, que é apenas um primeiro capítulo de outras que se seguirão, inclui um auto-retrato (imagem número quatro desta fotogaleria), através do qual partilha também a sua história. "Inicialmente, não queria integrar o projecto, mas conhecer outras mulheres com histórias de assédio e abuso sexuais fortaleceu-me, fez-me sentir menos sozinha." Por isso, vai continuar.

Por ora, não conseguiu ainda mostrar o projecto no país onde nasceu e cresceu. "Não é um tema ou um um corpo de trabalho sobre o qual as pessoas queiram discutir, no Egipto. Mais a ocidente é muito bem recebido." Foi mostrado no Festival de Fotografia de Atenas, no início do ano, será exibido no museu Foam, nos Países Baixos, em Setembro, e em Ladnskrona, na Suécia. "É importante protestar contra a violência sexual, contra a culpabilização e humilhação das vítimas. Não podemos mais aceitar sentir vergonha."