Sao Tome
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Crimes sem castigo, culpados sem perdão

Esta reflexão pretende chamar a atenção para a banalização do mal associada ao homem que é incapaz de pensar e para a responsabilidade individual numa sociedade que vive uma crise aguda de valores humanos.

O ponto de partida são os acontecimentos que conduziram ao genocídio no Ruanda e o extermínio de judeus durante o regime nazista de Hitler na Alemanha.

 O Ruanda era uma sociedade dilacerada por conflitos sociais e étnicos com um regime antidemocrático. O genocídio podia ter sido evitado se a comunidade internacional tivesse agido atempadamente para o prevenir. As evidências abundavam.

Na Alemanha nazista, Hitler chegou ao poder através de eleições e cimentou o seu poder totalitário na base de leis aceites pela maioria da população. A medida que o seu poder se consolidou, no meio de atrocidades, instaurou a “solução final”, o extermínio dos judeus e de outros estratos sociais considerados seres inferiores.

São Tomé e Príncipe é (ainda) um Estado de direito democrático, que tem inscrito na sua constituição, direitos e garantias fundamentais.

As diferenças são claras e indiscutíveis. Todavia é importante salientar que os fenómenos sociais não surgem de repente, do nada. Eles germinam nas sociedades com graus variáveis de aceleração baseados em práticas sociais que actuam sobre valores e princípios que em dadas circunstâncias se podem impor a todos e mudar radicalmente o destino de comunidades humanas.

É preciso olhar com atenção. Vou verificando no nosso país fenómenos preocupantes. A intolerância aprofunda divisões a todos os níveis, a violência de todo o tipo está bem presente no quotidiano, a criminalidade se alastra, crimes hediondos são praticados sem se conhecerem os actores (caso Jorge Santos); pessoas normais matam, gente com estatuto mata, agentes do estado matam, e agora em 25 de Novembro tivemos o que tivemos. A violência extrema começa a ser aceite como algo normal!

Não há razão para alarme? São factos episódicos? O que me preocupa é a emergência de um padrão, de uma constante: aumenta a criminalidade, sobretudo a violenta, associada com a impunidade. É certo que nos Estados que menciono neste artigo a violência e o crime estavam inscritos nas leis e no nosso caso as nossas leis proíbem e punem os crimes de maneira clara. Mas a impunidade não torna as situações iguais? Leis que não se cumprem, crimes que não se punem não produzirão o mesmo efeito? Mais concretamente o mal não está a ser banalizado? Não estamos progressivamente a aceitar o mal, o crime, a morte violenta, como uma coisa natural?

Nesta situação uma pergunta se impõe: a culpabilidade é generalizada e a absolvição absoluta? Digo que não. Hitler suicidou-se. Os seus principais companheiros foram capturados, alguns muitos anos depois, julgados e condenados. No nosso caso, os crimes e alguns dos seus actores são conhecidos outros desconhecidos.O castigo, a punição é que não existem na maioria dos casos. Por incompetência, por negligência, por corrupção, por medo e por subserviência aos poderes. Daí o título desta reflexão: Crimes sem castigo, culpados sem perdão.

Para continuar a reflexão vou socorrer-me da obra de uma pensadora do século XX Hannah Arendt, e da sua análise do julgamento de Otto Eeichmann, um dos líderes nazistas condenado pelo genocídio de judeus durante a 2ª Guerra Mundial.

No seu livro “Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal” a autora considera que o totalitarismo nazista criou um novo modelo de criminoso, na medida em que a execução sistemática e organizada de milhões de seres humanos, não é considerada uma monstruosidade por parte de um grupo, mas um acto perpetrado por pessoas que cumpriam obrigações burocráticas. Esse cumprimento de ordens é associado a ausência de reflexão, ausência de responsabilidade legal e uma inversão de valores morais provocados pelo Estado nazista através de massacres administrativos.

Ao examinar as trevas que dominam a política durante o nazismo, Arendt entende que o totalitarismo transformou o crime em algo correcto, desejável e legal. Através da análise do perfil de Eichmann, Arendt procura entender como um homem limitado, normal pode desempenhar um papel tão preponderante no extermínio de tantos milhares de pessoas.

Eichmann foi acusado de 15 crimes entre os quais propiciar as condições que visavam a morte de milhares de pessoas…de perseguir judeus em com base em motivos raciais, religiosos e políticos…execuções,… destruição física e psicológica, aprisionamento, etc, etc.

Eichmann declarou-se inocente de todas as acusações e não se sentia responsável pelos seus actos porque, defendeu-se, estava apenas a cumprir ordens do seu governo, era um funcionário que não sujava a mão com o sangue das suas vítimas, declarou mesmo que nunca matara ninguém. Era um alto funcionário do círculo do poder que planeou o genocídio mas afirmou que só executava ordens: assinava documentos, colocava carimbos, organizava a logística de transportes para levar os prisioneiros para os campos de concentração para serem exterminados. Matar nunca matou. Ao analisar o comportamento de Eichmann Hannah Arendt revela um fenómeno novo. Aquele que comete o mal não precisa ser forçosamente um indivíduo sádico, genocida, monstruoso. O réu mostrava uma profunda indiferença pelas vítimas. Ele cumpria cegamente as leis. Ele era uma pessoa normal, dentro de uma nova “normal social”. O nazismo inverteu a ordem e os valores morais numa sociedade e o “mal se converteuem norma, estava generalizado e banalizado” Ao cunhar o termo banalidade do mal Arendt não quer dizer que considerava a prática do mal banal, mas sim que os nazistas o consideram banal. A banalidade do mal não está necessariamente no plano metafísico; a banalidade faz parte do meio político, histórico, é uma condição humana, não faz parte da natureza humana.A expressão banalidade do mal aplica-se a indivíduos como Eichmann que, convencidos dos seus deveres, praticam o mal sem motivos especiais, de maneira gratuita, sendo pouco capazes de sentir ressentimentos, muito menos reflectir sobre os seus feitos. A banalidade do mal é um fenómeno humano que nasce do “não exercício da liberdade”. O não exercício da liberdade ocorre num vazio do pensamento, associado a uma crise moral como acontece no totalitarismo. Quando pensamos, o nosso pensamento procurar entender as causas e fins, tem implícitos valores morais e éticos que dão significado e sentido às nossas vidas. Pensar não é simplesmente raciocinar, é olhar para dentro de nós e agir com valores e princípios. Sócratesusava o diálogo para se questionara si próprio, não aceitava a primeira resposta, nem a segunda, ele indagava em permanência. No exercício da reflexão Sócrates chega a conclusão que os seres humanos são plurais porque no mínimo eles são o EU e a própria consciência. Somente aquele que sabe viver consigo mesmo está apto a viver com os outros. É melhor estar em desacordo com todo o mundo que estar em desacordo consigo mesmo. A razão pela qual não devemos matar, mesmo que não estejamos ser vistos por alguém, é que não queremos morar junto com o assassino. A nossa consciência é sempre testemunha de tudo o que fazemos.

Para Arendt, Eichmann não era capaz de estabelecer o diálogo “entre mim e mim mesmo”que desde Sócrates e Platão chamamos pensar”. Eichmann representava o melhor exemplo de um assassino de massa que era ao mesmo tempo, um perfeito homem de família. Por isso afirmou no Tribunal que apenas cumpria o seu dever, não só cumpria ordens, mas também obedecia a lei. A responsabilidade individual acaba diluída pelo sistema e dá ao individuo a sensação de dever cumprido, sem responsabilidade pessoal alguma pelos seus feitos criminosos porque tudo emana do sistema e está previsto no regulamento. Segundo um comentador da obra de Arendt, Eichmann, um dos maiores criminosos do seu tempo estava amparado pelas leis do seu Estado que transformou crime em virtude, a violência em valor positivo e –mais do que isso, o crime tornou-se legal e passou a ser um dever.

Mas temos de sublinhar: a obediência é uma cumplicidade, o silêncio é uma aceitação, a colaboração é co-autoria.

Concluindo. Ainda temos o aparato legal para impedir que o mal se torne uma banalidade, que haja crimes sem culpados e sem castigo. Mas a nossa indiferença, o nosso oportunismo, a nossa covardia, a corrupção de valores, o situacionismo, a precariedade da existência diária, podemabrir caminho a males sem fim por aqueles que usam o poder sem qualquer controle político ou sem respeito pela ética republicana. O medo quando se instala, é terreno fértil para todos os males.

Finalmente. Numa sociedade em que o convite ao mal existe em cada esquina, precisamos olhar para dentro de nós com frequência e tomar consciência das referências que o nosso criador colocou no cofre do nosso coração. Só assim podemos viver em paz e com responsabilidade. Assim o indivíduo que pensa e é consciente, o indivíduo que não deseja ser considerado um criminoso, mas ao mesmo tempo é obrigado a fazê-lo “porque cumpre ordens num sistema que exige obediência” só tem uma saída: não assuma responsabilidades e compromissos em apoio a qualquer forma de opressão e injustiça. Em vez disso defenda o que é justo, belo e bom:a liberdade e a justiça.

Rafael Branco

Licenciado em Relações Internacionais

B.I. 11213