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Eu, se fosse a si, Lula, não vinha a Portugal – Miguel Sousa Tavares

Pela actualidade e profundidade do artigo do escritor e jornalista português Miguel Sousa Tavares, no jornal Expresso, o Téla Nón decidiu publicar e sugere uma leitura atenta a todos.

Por Miguel Sousa Tavares(artigo e fotografia extraídos do jornal Expresso) – Jornal Expresso / Portugal

Já aqui critiquei por duas vezes discursos de Lula da Silva, após a sua posse, que me pareceram em nada contribuir para unir uma nação brasileira partida ao meio. E, no passado, também critiquei a política externa para a América Latina do seu anterior mandato, demasiado condescendente com democracias-fantoches de esquerda.

Mas Lula é o homem que pôs fim ao pesadelo Bolsonaro e restituiu a democracia plena e a dignidade a esse grande país americano. Só por isso, nós, que temos a mania de nos considerarmos “irmãos” do Brasil, deveríamos estar a preparar-nos todos para receber em festa o Presidente deste renascido Brasil. Mas o Presidente brasileiro representa mais do que isso, representa uma comunidade de milhões de portugueses no Brasil e centenas de milhares de brasileiros em Portugal, hoje perfeitamente integrados e indispensáveis na vida económica e social do país. Esta é uma ocasião de há muito esperada para retomar uma relação de proximidade e confiança, interrompida com os anos negros de Bolsonaro em que Marcelo se sujeitou a ser por ele humilhado duas vezes em Brasília.

Porém, parece ser também a ocasião propícia para os nossos saloios bolsonaristas de imitação, os protofascistas do Chega, prepararem uma peixeirada pública contra Lula na Assembleia da República, com a qual querem fazer uma demonstração pública de um patriotismo salazarento, na data do 25 de Abril. Ouvindo-os, conclui-se que pretendem substituir-se à justiça brasileira, julgando e condenando aqui o Presidente brasileiro, não já respeitando a presunção de inocência, mas nem sequer o caso julgado e, muito menos, a soberania do Supremo Tribunal Federal do Estado Brasileiro.

Esta saloiice seria apenas ridícula se não se desse o caso de poder degenerar também num incidente diplomático sério e num enxovalho para o país, que tão mal tratou esta visita desde o início.

E estavam as coisas neste ponto, já suficientemente embaraçoso, quando Lula foi à China — o que desde logo incomodou os nossos atlantistas — e declarou o seguinte e apenas o seguinte.

“Os Estados Unidos devem parar de encorajar a guerra e a União Europeia deve começar a falar de paz.”

Caiu aqui, mais do que em qualquer outro lado, que eu me tenha dado conta, o Carmo e a Trindade. O presidente da IL, Rui Rocha, sintetizou tudo numa frase: “Lula é um aliado de Putin.” O pessoal da NATO de serviço à imprensa sacou imediatamente das pistolas e foi atrás de faca nos dentes, acusando Lula de ter posto agressor e agredido no mesmo patamar, embora ele não tenha dito nada disso e até tenha votado pela condenação da invasão da Rússia, quer na ONU quer no G20. Mas a verdade conveniente estava deturpada e instalada e no principal jornal de um dos três canais televisivos portugueses os dois pivôs resumiram assim a declaração de Lula: ele — “O Presidente brasileiro acusou a União Europeia de ser responsável pela guerra na Ucrânia”; e ela — “E colocou Portugal como um dos culpados pela guerra.”

Ora, e apenas para que conste. O Itamaraty, é uma escola de diplomacia e uma das instituições mais prestigiadas do Brasil, talvez a única que tentou resistir mesmo durante a ditadura militar; o Brasil, ao contrário de Portugal, tem uma longa tradição de política externa própria e independente, que, no anterior mandato de Lula, esteve à beira de o levar a um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, e com o nosso apoio, aliás; dessa tradição faz parte uma postura em relação aos EUA de “aliado, mas não vassalo”, para utilizar a expressão de Macron na China, e que é o oposto da nossa, como se viu sempre, culminando na vergonhosa cimeira das Lages, e que só foi excepção, e pelas más razões, durante o governo de Salazar; e, enfim, o que se diz de Lula e do Brasil pode dizer-se de qualquer outro estadista estrangeiro ou país: no dia em que uma invocada superioridade

moral, vinda não se sabe de onde, só nos consentisse ser visitados por quem comungasse das nossas ideias sobre o mundo, ainda teríamos de ter menos ideias sobre o mundo das que temos hoje ou menos visitas daquelas que ainda vamos tendo. Mais uma vez: tudo isto seria ridículo se não corresse o risco de se tornar sério. Que aos pantomineiros da pátria do Chega se tenham vindo, com este pretexto, juntar vozes da IL, do PSD, e até do PS, defendendo, entre outras más–criações, que ele deve ser confrontado publicamente na AR com aquilo que “nós” pensamos sobre a Ucrânia — tipo lição correctiva à criança mal comportada —, como se o Brasil não tivesse direito a definir uma política

externa sem a nossa concordância, é de uma presunção e de uma arrogância inimagináveis. Devem ter perdido todos o juízo!

O mais extraordinário de toda esta histeria nacional é que o que Lula disse na China é rigorosamente verdade.

Que os Estados Unidos estão a encorajar a guerra é absolutamente incontestável desde o célebre discurso do secretário da Defesa, Lloyd Austin, depois de visitar a Ucrânia, há mais de um ano, quando afirmou que a guerra só podia terminar quando a Rússia fosse completamente derrotada. E que a UE nada fez até hoje para promover a paz também é uma evidência.

(Sabiam que a UE tem uma Comissão para a Promoção da Paz? Eu não sabia até há dias e desconhecia qualquer acção da dita Comissão para tentar promover a paz na Ucrânia. Mas eis que, finalmente, fez alguma coisa. Sabem o quê? Angariou, entre os membros, mil milhões de euros para comprar munições de guerra para a Ucrânia…).

Nada disto, como o demonstram as posições do Brasil, exclui a condenação da invasão russa. Mas não é porque uma das partes seja culpada pelo desencadear de uma guerra e a parte invadida esteja a sofrer com ela que se deve deixar de procurar uma solução de paz — antes pelo contrário. Mas o partido da guerra, que tomou conta da imprensa ocidental e decretou um pensamento único, não quer ouvir falar de paz — por múltiplas razões que um dia se tornarão claras para todos.

Até lá, quem se atreve a falar de paz é “amigo de Putin” e fica o assunto resolvido: hoje Lula, amanhã o Papa, cuja visita em Junho, depois de tantos apelos que ele tem feito à paz na Ucrânia, também é de esperar que ofenda as boas consciências da “ordem liberal ocidental”.

E assim, numa semana em que ficámos a saber que os Estados Unidos, um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, escutavam as conversas telefónicas do secretário-geral da ONU, que preside ao respectivo Conselho, em vez de ser esse o escândalo da semana, os guardiões da ordem liberal preferiram escolher como escândalos as declarações de Macron e de Lula na China porque elas destoam do únicodiscurso consentido. E mesmo quando se ficou a perceber pelo “Pentágono

Leaks” que os Estados Unidos acham que também Guterres é amigo de Putin porque intermediou com a Rússia o acordo de exportação de cereais, de que a Ucrânia e o mundo precisavam desesperadamente, e pela simples razão de que não admitem que se negoceie coisa alguma com a Rússia, nem assim uma imprensa seguidista e cega como eu nunca vi percebe que estes arautos da ordem liberal ocidental, como no poema de Eugénio de Andrade, só têm para nos dar “um horizonte de cidades bombardeadas”.

Acompanhe o artigo e a entrevista dada por Miguel Sousa Tavares, ao jornal EXPRESSO :

https://expresso.pt/podcasts/miguel-sousa-tavares-de-viva-voz/2023-04-21-Eu-se-fosse-a-si-Lula-nao-vinha-a-Portugal-e-as-consequencias-de-pensar-que-se-pode-dar-licoes-de-politica-externa-ao-Brasil-c24a2059