Sao Tome
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JITA E SÍSIFO: a canção santomense e a tragédia grega

O alarme devia ter soado quando o ossobô, que nem sequer tem um tecto, é que se pôs a chamar a chuva. Os sinais sucederam-se. O seguinte primeiro foi protagonizado pela lula. Instalou-se no mercado grande e começou a maldizer de grandes peixes, como cherne e o badejo. Talvez o alerta tenha sido ignorado porque a lula não merecia muito respeito. Afinal ninguém se dignava sequer pescar a lula. Ela dava a praia, às centenas, oferecia-se para ser apanhada.

Com o klôngôji a coisa tornou-se mais séria. Perante a água mato que obrigou todos os outras criaturas a tomar providências para sobreviverem, o soberbo klôngôji instalado confortavelmente debaixo do lixo do mato saiu triunfante rindo-se da situação dos outros. Foi avisado: a terra molhada está ainda fria.

Quando o Rei Sol aquecer, perecerás, ressequido, contorcendo-te sobre ti próprio. Era um aviso sério mas o klôngôji não é bicho da cidade. Seguiu-se o manglôlô. Imprudente e impreparado ignorou a força da enxurrada e acabou arrastado.

O mais grave aconteceu com a anka. Perante o desespero dos outros camarões do rio, inexoravelmente abalados pelas forças da água, anca instalou-se num pedregulho, lavou as suas mãos como Pilatos, e observou impávido a luta dos pequenos camarões pela sua sobrevivência. Desta vez esta atitude foi testemunhada por todos os mortais e os Deuses, que logo vaticinaram um castigo para a anca. Um dia ela própria com os seus próprios pés iria directamente para uma cova.

Todos estes alertas teriam servido para seres armados de razão assumirem mais responsabilidade e não ignorassem a força do acaso ou do destino.

Mas não. Ousaram mais. Desafiaram directamente os deuses. Coube a Jita, cobra sorrateira, traiçoeira, anunciadora de grandes males, habitante de zonas escuras, aproveitar um acaso natural, outra vez uma enxurrada, para descer até a residência dos deuses, junto ao seu templo(igreja da Sé) para desafiar peixes guardiões, como o barbudo e a tainha, ameaçando bater-lhes. Vaidosa, acreditando nas suas virtudes a jita esqueceu-se que os seus poderes tinha sido apoderados pela cobra preta que se refugiou no ôbô profundo e que além disso não tinha guelras para respirar em água salgada. Os deuses então decidiram por uma condenação exemplar:

“Jita ê bô ka ta ai jê awá ku kwali ba bloka pê glêza

Toma basola bali ventu/toma awa laba ventu, ante dja finali”.

Que condenação terrível. Viver eternamente, de mesmice letárgica repetindo para toda a eternidade as mesmas improfícuas tarefas. Lula, klôngôji, manglôlô, ankca e jita são metáforas, as canções podem ser consideradas como alegorias da condição humana e leva-nos a perguntar, vale a pena viver uma vida assim?

Albert Camus vai ensaiar uma resposta na obra “o mito de Sísifo”.

Para compreendermos a obra de Camus temos de nos situar no contexto. O século XX começou com a confirmação da superioridade da Razão e do potencial da ciência para criar uma vida feliz, principalmente para os europeus. Contra esta expectativa, milhões de vidas foram ceifadas por duas grandes guerras munidas e pela morte cruel de outros milhões de vítimas do holocausto nazista. O iluminismo tinha denunciado muitos dos mitos religiosos e crenças que justificavam uma vida eterna e feliz no paraíso. As grandes massas operárias viviam exploradas sujeitados as máquinas que tornavam seus dias rotineiros e sem sentido.

A pergunta existencial impunha-se: Como conduzir nossas vidas quando não acreditamos nem em Deus nem na razão, pergunta-se Camus.

A utilização do mito de Sisifo justiça-se pela presença na tragédia grega de vários mitos sobre o destino humano.

Questões são colocadas como no caso do Rei Midas que vai procurar Sátiro, um homem com grandes poderes e conhecimento e pergunta-lhe:

– “O que é melhor para a vida humana?”

Sátiro responde: “Não ter nascido”.

 Mas o Rei volta a perguntar: E se já nasceu?

Sátiro responde: “Deixar esta vida quanto antes” e justifica: Esta vida está repleta de tormentos que o homem não pode controlar.

Antes de relatar o mito de Sísifo importa mencionar um outro mito. Faço-o brevemente porque a relação com a condenação de Jita de apanhar água com cesto para lavar a igreja é espantosa.

O rei Danaus da líbia tem 50 filhas. O seu irmão Egipto das arábias tem 50 filhos. Egipto chantageia o irmão para se proceda a um casamento entre os filhos e filhas de cada um. Não podendo negar o pedido do seu irmão Danausvai  aconselhar as filhas a levarem consigo uma faca e na noite de núpcias matarem os maridos e assim o casamento não se concretizará. Acontece que o destino vai interferir no plano. A irmã mais velha apaixona-se pelo seu noivo, não o mata e fogem os dois. As outras irmãs cumprem o plano e matam os seus noivos. São perseguidas e enviadas para o reino dos mortos e condenadas para toda a eternidade a encher jaros de água e despeja-la num poço sem fundo. Não é este o destino da Jita, cantado por Ayde India?

Voltemos ao mito de Sísifo. Sísifo, um homem inteligente e manipulador, despertou a ira dos deuses incluindo Zeus, o maior dos Deuses. Zeus mandou o deus da morte, Tanatos, perseguir Sísifo, mas este ao encontrar-se com a morte oferece-lhe um colar e elogia sua beleza. O colar na verdade era uma coleira e, assim, ele aprisiona Tânato, a morte. Por algum tempo, ninguém morreu. A prisão de Tanatos impedia que os mortos pudessem alcançar o Reino das Trevas, tendo sido necessário que fosse libertado por Ares. Foi então que Sísifo, não podendo escapar ao seu destino de morte, instruiu a sua mulher a não lhe prestar exéquias fúnebres.

Quando chegou ao mundo dos mortos, queixou-se a Hades, soberano do reino das sombras, da negligência da sua mulher e pediu-lhe para voltar ao mundo dos vivos apenas por um curto período, para a castigar. Hades deu-lhe permissão para regressar, mas quando Sísifo voltou ao mundo dos vivos, não quis mais voltar ao mundo dos mortos e enganou os deuses pela segunda vez. Sísifo viveu por longos anos e morreu de velhice. Então os deuses decidem infligi-lo duro castigo, pior do que a morte.

Sísifo iria viver eternamente mas foi condenado para todo o sempre a empurrar uma pedra até ao cimo de um monte, caindo a pedra invariavelmente da montanha sempre que o topo era atingido. Este processo seria sempre repetido até à eternidade.

Logo no início de O Mito de Sísifo, partindo do problema do suicídio, Camus reflecte sobre o carácter imperativo dos costumes, considerando que até mesmo viver é antes de tudo um hábito, e que o recurso ao suicídio mostra, dentre outras coisas, a percepção do vazio, da falta de fundamento e de propósito desse costume que é existir. Trata-se de um Absurdo. Ele relaciona directamente o carácter vão da nossa existência aos paradoxos fundamentais da condição humana: a contradição entre o desejo obstinado de conhecimento e de vida e o mundo inexplicável e finito.

O homem não tem controlo sobre si e sobre o seu futuro. Tudo o que lhe acontece é obra ou do acaso ou do destino.A existência não tem sentido. Sobretudo a morte, a oposição entre nosso apego apaixonado pela vida e o carácter efémero da nossa condição: trata-se, para Camus, da primeira e mais absurda das contradições, que esteriliza a princípio quaisquer sentidos e valores que se queira conceder à existência.

Em contraposição ao indivíduo absurdo, Camus fala sobre o indivíduo quotidiano, que, carregado de esperanças, deixa-se levar pela imaginação, ausentando-se do presente e planejando um futuro ilusório, inventando explicações e razões plausíveis para seus projectos, lançando toda sua vida e todos os seus esforços num tempo inexistente, como se todo o seu destino pudesse ser previamente ordenado, esquecendo-se de que a única certeza que temos do futuro – e que nos ameaça a todo instante – não é outra coisa senão a morte.

Portanto, Camus está particularmente interessado no que Sísifo pensa, enquanto caminha de volta ao sopé da colina para começar de novo. Este é o momento verdadeiramente trágico, quando aquele homem se dá conta de quão miserável é sua condição. Reconhecer a verdade é a maneira de conquistá-la. Sísifo, como um homem absurdo, mantém a tarefa de seguir em frente. No entanto, quando Sísifo consegue reconhecer a futilidade de sua obra e tem certeza de seu destino, ele se liberta para perceber o absurdo de sua condição.

Assim, ele atinge o estado de aceitação. Afinal Sísifo pode ser feliz.

Voltemos a nós. Alcançamos a liberdade, fundamos a 1ª República, com a 2ª chegou a a democracia, e os Governos sucederam-se, cada um com sua ilusão, cada um de nós vendo a esperança evadir-se e a precariedade instalar-se. Preenchemos os espaços abertos com canções de maldizer, triturando todos metidos no mesmo saco.

 Mas contrariamente aos outros povos, a maioria de nós não vive problemas existências. A luta pela sobrevivência é avassaladora. Preenchemos osa preencher o presente com nossas vidas precárias. Qual a explicação? Pais de muitas crenças damos “saltos de fé” como Abraão. Ele deu um salto de fé quando Deus o concedeu um filho, ele e a mulher já tinham uma idade avançada e com poucas possibilidades de procriar. Extremamente feliz, Abraão considerou um absurdo, Deus ordenar-lhe passado um tempo que sacrificasse o seu único filho.

Apesar de toda a dor Abraão deu “um salto no escuro”. A sua fé levou-o a cumprir o mandamento de Deus e quando se preparava para sacrificar o filho, apareceu um anjo anunciando que Deus é bondoso e justo e ele não precisava sacrificar o seu filho. Demonstrando a sua fé Abraão conservou o seu filho e teve muitos outros. Será esta fé que nos impulsiona a dar saltos no escuro?

Ou talvez seja uma questão de atitude? Oiçamos os nossos cantores:

“Vida d’ome sa pintenxa, vida d’ome sa pintenxa… ome xka cumpli distinu,distinu kuD esu d’e, ê pô kôlê pa ê na munja fa, distnu ku Dêsu d’e  sela ê gwent’e pa ê  na sola fa, non ka ngwent’e sama Jizu, olá ku sumu kamêsê manda ôtlô modu di vivê ê pôvô mantxan copladu ka sa di glasa”.

E assim vamos vivendo com o conselho dado a Noémia:

“Kwaku da kwa se sa nansê zuntadu ku ma peneta, Nuemya kontenta. Nuemya kontenta ô kwa di tê ka bi ni mon di Dêsu, lôpa ni awa tudu dja bô sêbê kuê tê fono, punda tudu dja ê sa ubwê”.

Noémia ao aceitar o seu destino pode ser feliz. O absurdo não é um beco sem saída num mundo sem sentido; ele pode ajudar-nos a encontrar um sentido para a loucura que é viver.

Nota: Meus agradecimentos ao “parlamentares do Avenida” que deram sugestões de canções e Caustrino Alcântara pela ortografia do crioulo.

RAFAEL BRANCO