Sao Tome
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Quinta da Ellyzé – Transladação da urna

Meu cunhado! Você já está acordado. Abra bem olhos à consciência e puxe cadeira ou melhor, acomode-se no sofá cinzento. Sente-se por favor!

É difícil acreditar nesta sexta-feira. Não estou a conseguir pôr língua nas palavras apropriadas que possam apalpar meu nervosismo e acalmar deriva deste dia. Não sei e nem imagino como reagirá minha irmã. Ellyzé morreu!

Embora margem de desconfiança fosse mínima das mínimas, fiquei surdo. Não tinha perceção de que surdez pudesse albergar quarto mesmo ao lado da embriaguez. Ficou assim por digerir um só toque de soluço que foi intermediando irrisória pausa às linhas desafiantes da cunhada, infelizmente culminadas de duas palavras pesadas de emoção e bem possíveis de romper ondas invisíveis e ler nitidamente brisas de companhia carregadas de oportunas lágrimas.

Envolvi-me na nítida sensação de que circunstância extraviou os meus cinco sentidos de comunicação: visão, audição, olfato, paladar e tato. De semblante contagiado, sem resistência, cedi-me ao jogo sedutor da interlocutora londrina. Na verdade, momentos sem perspetiva de compreensão, não há como dar mãos de casamento aos fatos que nos saqueiam vocábulo à garganta.

Após lavar esmagamento de azafama do hotel, inquietante, a dona da menina havia uma vez mais e em repetição de dias enfileirados como quem ganhasse algum fôlego perdido do rasto de filha da mãe, assumisse ela própria encontro indesejado ou no mínimo alguma suspeita envolvesse paradeiro juvenil. Obra específica de cordão umbilical, antes de jogar-se ao lençol, ela resmungou-se com ecrã do computador.

Longe de vista, perto do coração. Meu Deus! Algo de mal estará a atormentar minha filha? Parece pesadelo mas não entendo porquê do telemóvel da Ellyzé já nem dá sinal. Senhor, dê-me voz da minha menina quando manhã despertar-me de sono!”

Já nem era imperativo que noite fosse escura e pouca importava aos meus ombros gesticulando sobe-desce ao impacto do estrondo. Em sequência, embriagada circunstância impulsionou aceleração rítmica da caixa torácica inundando uma nuvem gigantesca cinzenta, sem fio de luz, para profunda escuridão cobrir-me por completo olhos da consciência.

Amargo, sagaz e drástico pouco-a-pouco gole da informação britânica furando mudez da sala são-tomense, foram-me de tempero alcoólico e perspicaz trepando cabeça despertada do sono francês para embate com insensível e da mais poderosa realidade a tocar sentimento humano.

A esposa por instante dispensada do cenário mantinha-se no diálogo com o subconsciente ressonar, longe de adivinhar em que gemido questionável lentamente infernizava madrugada trágica ao marido. Quando? Aonde! Ás que horas? Como? Acidente? Homicídio? Houve lesão craniana, torácica ou de todo corpo?

Sem resposta, nem censura a apontar insignificância à minha insatisfação, gemido imitava suspiro a pesar tonelada melancólica e crítica de transbordar-se pelo choro. Disponível a ressentir da anestesia compassada e completa, ingerida de cabeça aos pés, a ensurdecedora sentença sem como cumprir pena, prosseguiu-se dentro de mim palpitando falsidade à estrondosa aurora.

Sem pernas de fuga e apesar dos soberbos tentáculos da madrugadora brutalidade ao casal africano de “Blackiére”, bairro árabe encravado nos Alpes mediterrânicos franceses, eu dispunha de missão facilitada pela sociedade. Homem não chora!

Embalado no tráfico engarrafado pelo episódio do tabuleiro da vida, havia missão que pudesse testar nível à alma embriagada, partilhando dor de luto ao público e, em especial, familiares e convívio mais próximo cujos terraços digitais passaram a ser itinerário essencial e mais curto. Bastaria copiar mensagem londrina a estalar paciência dos meus ouvidos e arrasar olhos colados à madrugada, “Morreu Ellyzé!

A acalmar-se no final de Agosto após meses atrás de investida da alta temperatura do ano com cadáveres sem conta em Pedrogão Grande e conselhos fronteiriços portugueses para desastroso balanço de 64 vítimas mortais e mais de duas centenas e meia de feridos causados pelas chamas florestais, qualquer observador meditaria na noite de sexta-feira de Verão a transformar-se na madrugada chuvosa de lágrimas do casal são-tomense.

Todavia, a caixa encefálica suporte inimaginável de peregrinação constante quis contrariar percurso à prova da aurora ou adiar notícia pública recuperando viva voz de alguém que já não existia à especial e festiva manhã de sábado de Nossa Senhora de Nazaré, a deusa-patrona quem recebeu bebé pouco mais de duas dezenas de anos atrás.

O sacerdote da paróquia, padre Domingos, encarregou-se do batismo da menina em tenra idade para mais tarde dotar espírito infantil de fé católica para confrontos do percurso pelo mundo.

Desde que estreei Londres, aonde no primeiro teste em casa da minha tia comemorei maioridade, os dezoito anos, que senti pertença de Inglaterra. Nem vossa França e perfume de Paris, nem Portugal e fado de Lisboa, esta que me fez mais de uma década travessia adolescente à mulher conseguiram impor-se à Londres.

Meu pai, vê só! Apesar de árdua batalha juvenil, picadas de baixa moral e longe de vocês, a família, meus mestres de London University com humanismo, aplicação e exigência desafiadora reforçaram na vossa menina paixão londrina.

Inglaterra país de auto-adoção, é terra da minha felicidade. Vocês entendem isso? Algo inexplicável! Terei de voltar à São Tomé e Príncipe para pôr fim ao conflito de domínio territorial.”

Lembranças entulhadas na memória apressaram-se ao presente como que tudo estivesse pré-destinado pelo divino. Enquanto isso, dono do mundo em prós e contras do Estado de Direito democrático, sem rotas do norte e com consciência a patinar horizonte, eu fiquei sem bússola de chegar à estrela polar. Todas promessas para festividades com champanhe francês diluíram-se na curta mensagem “Morreu Ellyzé!

Condenado ao purgatório, diferentes ziguezagues de desestabilizar e estabilizar itinerários da vida embateram-se no STOP que depois de cerimonial fúnebre de Londres, após 1001 imbróglios, restou-nos transladação do pó da vida aos pés de “ulululu” na terra sagrada à qual foi erguido jazigo para incrédula leitura: “Aqui jaz Ellyzé D’Alva Teixeira Cardoso”.

Por mais trapalhada de poeiras no espírito embaciado de luto pela morte de própria filha, pela primeira vez, sucumbido ao fôlego engasgado, eu merecia recolher condimento de rogar ao mundo de alegria ou tristeza, coesa simples e ao alcance de todos. Silêncio!

No cumprimento fiel aos desígnios de existência relâmpago, pais e irmãos da malograda Ellyzé D’Alva Teixeira Cardoso, jovem de 26 anos, antiga finalista na Universidade London University falecida em Londres-Inglaterra, levam ao conhecimento público de familiares, amigos e ademais de que, finalmente, a urna transportando cinza da defunta, será transladada no próximo mês de Agosto para São Tomé e Príncipe.

A cerimónia fúnebre terá lugar na igreja da Trindade e a urna rumará à última morada no cemitério da mesma cidade, esta que arquiva aos olhos de ontem tão próximo, primeiros passos da criatura cujo embarque precoce roubou vida na flor da idade juvenil.

José Maria Cardoso