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TCV e o debate político: António Espírito Santo afastado “por ordens superiores”

António Espírito Santo Fonseca, antigo Presidente da Assembleia Nacional e Provedor de Justiça, foi “desconvidado” do painel de comentadores do Jornal de Domingo, da Televisão Pública, após os seus comentários gerarem contestação nas redes sociais. A direcção da TCV e o editor-chefe acusam-se mutuamente, enquanto o visado resume o problema à “cobardia política” do Governo. Governo, este, que diz nada ter a ver com o assunto.

António Espírito Santo, Fonseca, Presidente da Assembleia Nacional entre 1996 e 2001 e, Provedor de Justiça (2014-2020), foi convidado a integrar o painel de comentadores do Jornal de Domingo, na Televisão de Cabo Verde (TCV) e chegou a participar na edição do dia 23 de Julho, juntamente com Felisberto Vieira, antigo edil da Praia e ex-deputado do PAICV.

Os comentários dos dois geraram, entretanto, algum desagrado no seio de militantes, simpatizantes e amigos do MpD, que criticaram a TCV por formar um painel só com “ex-dirigentes de partidos ‘desamigos’ do Governo”, no quadro de uma “estratégia bem urdida para promover o desgaste do Governo”. Um post de Abalberto “Betú” Silva, actual conselheiro económico do Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva, acabou por ser a expressão desse desagrado.

Já em preparação para o painel seguinte, do dia 30 de Julho, António Espírito Santo foi então “desconvidado” pelo editor do jornal, Marco Rocha, conforme conta ao A NAÇÃO, alegando decisão interna superior. 

“Não me foi dada nenhuma justificação. O jornalista disse-me que recebeu ordens para me afastar do programa. Recebeu ordens superiores internas. É evidente que não vou alinhar nesse tipo de argumentação”, contestou o analista.

Acontecimento político

Para o visado, o episódio em si é a “manifestação da orientação política do Estado de Cabo Verde, nomeadamente do Governo, para a comunicação social”, um domínio sensível, como é de todos sabido, volta e meia, motivos de críticas. Uns porque o Governo é quem “domina” o espaço mediático e outros porque só se quer dar voz à oposição para “desgastar” o Governo e o MpD.

O episódio, no dizer de Espírito Santo, é um “acontecimento político e não administrativo”, sob o qual o “Governo deve dar uma explicação aos cabo-verdianos”. A seu ver, existe uma espécie de “cobardia política do Governo, de se esconder atrás da ‘administração’ do país”, sempre que posto em causa.

Tanto assim que, no seu entender, o que aconteceu no Jornal de Domingo não é diferente daquilo que o Governo fez relativamente ao Presidente da República, quando, recentemente, fez comentários sobre a comunicação social e foi um “administrativo” a responder, referindo-se, obviamente, ao director da TCV, António Teixeira. 

“Isto é que é de uma gravidade sem precedentes. O Presidente da República, quando fala, quem lhe responde é o Governo. Mas o Governo escondeu-se atrás de um administrativo”, aponta como exemplo.

Direção e Marco Rocha acusam-se mutuamente

Contactado, o editor do Jornal de Domingo, Marco Rocha, esclareceu que, enquanto editor, fez o convite a António Espírito Santo e explicou, a ambas as partes, portanto também à direcção, o motivo do referido convite, para “debater” ou “analisar” os problemas da actualidade juntamente com Felisberto Vieira, Filú.

Entretanto, como explica, depois da primeira prestação, a direcção da TCV viu “as reacções aos seus comentários nas redes sociais” e, agindo “precipitadamente”, ordenou a substituição do visado no painel.

“O director da TCV já defendeu que é o editor quem tem a responsabilidade de convidar pessoas. De facto, nós é que formulamos os convites, mas, sempre com o conhecimento e o consentimento da direcção da televisão”, esclarece Marco Rocha, para quem qualquer justificação deve ser dada, contudo, pela referida direcção.

Entretanto, à Rádio Pública, o director da TCV, António Teixeira, disse nada saber sobre o assunto, explicando que quem convida e desconvida comentadores é o editor do jornal. A mesma posição teve a chefia de informação, o que deixa a opinião pública sem saber o que pensar.

Já o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro para a Comunicação Social, Lourenço Lopes, garantiu que não há dedo do Governo na troca de comentadores no referido painel.

“É evidente que não. Em todas as televisões do Mundo as redações, as direções de informação, as direções das televisões tomam decisões relativamente à composição dos painéis de análise ou de comentário político ou social. Não há nenhum jornalista em Cabo Verde que diga que alguma vez recebeu orientação ou algum condicionamento por parte do Governo”, referiu Lourenço Lopes, citado pela RCV.

PR solidário com Espírito Santo

O afastamento de António Espírito Santo Fonseca suscitou uma onda de indignação nas redes sociais, com cidadãos a pedirem explicações à TCV sobre o que consideram ser um atentado à liberdade de expressão.

No meio das críticas há quem entenda que a ARC, enquanto Alta Autoridade para a Comunicação Social, deve pronunciar-se, independentemente de haver ou não uma queixa formal por parte de quem quer que seja. Tanto mais que, recentemente, no seu último relatório sobre o sector, chamou a atenção para a forma como a agenda noticiosa é gerida, ou monopolizada, pelos actos do Governo, além de problemas de centralismo regional, entre outros.

Quem também se mostrou “indignado”, por sinal dos primeiros, foi o Presidente da República, José Maria Neves, que, numa publicação na sua página pessoal do Facebook solidarizou-se com António Espírito Santo Fonseca.

“Temos de aprender a discordar, a respeitar as opiniões dos outros e a cultivar a tolerância. Caso contrário, estaremos a falar de uma democracia de papel, onde há quem pode e manda, sem respeitar a Constituição, as demais leis do país e as regras do jogo democrático”, exortou.

Essa indignação foi manifestada por outros cidadãos, entre os quais o antigo diplomata Manuel Amante da Rosa, que pede uma “imediata posição” da ARC.

“Os cidadãos têm de saber se o autoritarismo, censura e exclusão também faz praça nos órgãos públicos de comunicação. Onde estão proibidas posições contrárias às do Governo”, exortou.

Igualmente, a antiga ministra Cristina Fontes Lima considerou que, se a substituição de Espírito Santo não fosse “muito grave em matéria de liberdades várias”, seria, ainda assim, “uma boçalidade”.

“Ter comentaristas que tenham ou tenham tido ligações a um ou outro Partido não é novidade nenhuma e não estão lá como amigos ou ‘desamigos’ do Governo em funções”, pontuou.

Uma outra voz solidária a Espírito Santo é a de José António dos Reis, antigo ministro da comunicação social nos anos 1990 e fundador também do MpD, para quem o episódio constitui um caso de “saneamento político” e ao mesmo tempo de um crime de “violação da liberdade da comunicação”.

Por isso, entende, tratando-se de um facto “público e notório”, a ARC ao abrigo do artigo 52º dos seus Estatutos poderá “proceder a averiguações e exames” … “no quadro da prossecução das atribuições que lhe estão cometidas”, não carecendo, neste caso, de nenhuma queixa para poder actuar.

Para o articulista, António Espírito Santo Fonseca Fonseca “é um político de grande craveira”, “pessoa séria e vertical, estudioso e de pensamento profundo”, entre outros atributos.

Quem é António Espírito Santo

Presidente da Assembleia Nacional (1996-2001) e Provedor de Justiça (2014-2020), engenheiro de formação, António Espírito Santo integrou, nos anos 1990, o núcleo de fundadores daquele que viria a ser o Movimento para a Democracia (MpD), partido vencedor das primeiras eleições pluripartidárias em Cabo Verde em 1991.

Antes, à semelhança de vários dos seus outrora camaradas, a militância política de Espírito Santo, neste caso em prol da independência nacional, começou bastante cedo, jovem estudante ainda em Portugal, no quadro do então PAIGC, Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde. Identificado como trostkista, afastou-se desse partido em 1979.

Na primeira metade da década de 1990, juntamente com Jacinto Santos, José António dos Reis e outros, posicionou-se ao lado de Carlos Veiga no embate contra o hoje embaixador de Cabo Verde em Lisboa, Eurico Monteiro, embate esse que daria lugar ao Partido da Convergência Democrática (PCD), formação esta que contou, nas suas fileiras, entre outros, com Jorge Carlos Fonseca.

A sua ruptura com o MpD surgiria, em 1998-99, altura em que se posicionou, desta feita, ao lado de Jacinto Santos, então presidente da Câmara Municipal da Praia, na formação do Partido da Renovação Democrática (PRD), também extinto. Curiosamente, das destacadas figuras do PRD, ou de outros antigos dissentes, António Espírito Santo é praticamente o único que não se reconciliou com o MpD.

Desde que deixou a Provedoria de Justiça, em 2020, Espírito Santo Fonseca tem-se assumido como um activista da sociedade civil.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 831, de 03 de Agosto de 2023

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